O LENÇO NA MULHER GALEGO-PORTUGUESA
Nestes difíceis tempos de ignorância
sobre o que é o modo de vida e costumes tradicionais dos povos, cumpre lembrar
agora o jeito de vestir e de cobrir-se o cabelo (lenço/pano, cofia, mantelo) da
nossa senhora galaica como signo de discreção, elegância e por que não, de
praticidade nos labores de campo e mar (o nosso autêntico modo de viver e
sentir), e mesmo higiene. O texto que segue é descritivo mas também é um
manifesto sobre as preferências que as nossas mulheres tinham à hora de
simbolizar e significar o seu status social, laboral ou mesmo estado civil
(solteira/casada). Se o debate
actual sobre determinadas mulheres não europeias e europeias islamizadas que
levam lenço na cabeça, esquece que durante séculos, a fêmina ocidental também o
fijo (e só temos que nos retrotraer quarenta aninhos...), é que vamos
desconhecendo qual foi e é o nosso passado cultural a conservar, sejam
iranianas, catalanas, saxonas ou galego-portuguesas... escolham a etnia.
Temos que distingir em princípio os
seguintes tipos de lenços: o pano da cabeça o pano do pescoço, o pano de
cobrir, e o pano das mãos. Todos eles figerom-se tradicionais e são, contodo,
os elementos de atavio popular que maior pervivência mantiverom em toda a
Galiza (1). Tratamos aqui sobretodo o relacionado com o pano da cabeça.
O pano da cabeça é um lenço de seda,
algodão, lã, ou linho com debuxo rameado ou floral. Coloca-se trás dobrá-lo em
três pontas, formando assim um triângulo, e botando o vértice face as costas,
atando os extremos da base por baixo da queijada, acima da fronte ou detrás da
cabeça, e ainda aqui de duas ou três maneiras distintas. Dependendo da comarca
galega, a cor do mesmo varia desde o branco até o vermelho e o negro, passando
por toda a gama cromática entre elas. O negro representa o pano de luto. A
forma de levar o pano da cabeça atende à forma mais prática para as suas
usuárias: atando as pontas sob a queijada, chegando-as à parte alta da cabeça,
detrás da cabeça sob as trenças do cabelo, ou acima delas colhendo só a parte
de atrás do lenço, acima da fronte, e solto com as pontas sobre os ombros ou
caindo as pontas por diante.
O lenço usou-se a carão da cofia num tempo, rematando por desterrá-la,
passando por umha fase de lenços de bobiné, que não é mais que uma espécie de
cofia degenerada, que marca um tempo intermédio entre ambos usos. Hoje em dia,
o vistoso pano branco, de seda, rameado, que a madrinha regalava à sua afilhada
para o casamento está a ponto de desaparecer, já que para esta cerimónia usa-se
a gala branca completa. Assim e todo, o lenço vê-se ainda em todos os povos da
Galiza e norte português, e a gente cria à saída da Missa, ou da processom na
festa patronal, uma estampa de cor em todas as freguesias da nossa nação.
“A mulher galega é mui amiga de se
cobrir a cabeça, e hoje que as cofias e mantelas estám em desuso, o pano vem a
substitui-las, ainda que pobremente” (Juan Naya Pérez).
José-Carlos
Rios
NOTAS:
(1) Entendemos por Galiza não o território
administrativo que leva esse nome, já que se trata de um feito exclusivo do
isabelino século XIX. Nós entendemos por Galiza a nação étnica que compreende
as gentes enquadradas nos seguintes territórios: A Galiza autonômica, as amplas
comarcas étnicas galegas nas províncias espanholas de Astúrias, Zamora e Leom,
e a Galiza Sul abrangendo desde o Minho até o Douro e talvez para além, dentro
do actual estado português.
Bibliografia:
- NAYA PÉREZ, Juan. Cuadernos de arte gallego
nº39. El traje, ed. Castrelos, 1964.
-
FRAGUAS FRAGUAS, António. El traje gallego, ed. Fundación Pedro Barrie de la
Maza, 1985.
ANTROPOLOGIA COMPARADA (HISTÓRIA ANTIGA-MEDIEVAL COMPARTIDA) E MÚSICA TRADICIONAL DOS POVOS BERBERE E GALEGO-PORTUGUÊS
José Carlos Rios Camacho
Doutor em História Medieval
“Assim,
esses mouros, de escura tez, como o Monostato da Flauta Mágica, esses
guardadores de tesouros, seriam a personificação dum elemento importante do
subconsciente humano: a Sombra. A um tempo sinistros, medonhos e sempre um
bocado simpáticos, não sabemos por que, são os elementos negativos, de todos os
jeitos necessários para síntese harmoniosa da personalidade (...) Quantos mais mouros o guardem mais rico e
importante é o tesouro”. ROF CARBALLO (“Conselhos para encontrar tesouros”, introdução, p. 10, a Tesouros
novos e velhos de A. Cunqueiro, 1980).
Resumo: São as intenções e exposição deste introdutório trabalho antropológico, resultado de umas observações directas de realidades sociais e cultural-musicais no Rif marroquino na altura do segundo semestre do ano 1990, ao mesmo tempo tentamos dar umas anotações gerais sobre as culturas, literatura (lendas e mitos) e história antiga-medieval dos povos galego-português e berbere baseados numa ampla cultura atlântica que abrangeria o quadrante Galiza/Irlanda/Bretanha até o Rif norteafricano.
Abstract: The intentions and the short account of this anthropologic preliminary essay are the result of our work about some directs observations of the social and cultural-musical realities at the Moroccan Rif in the second semester of the 1990 year. At the same time, we attempt to give some general notes about the Ancient-Medieval History, literature (the legends and myths) and the cultures of the Berber and Galician-Portuguese peoples, based in a vast Atlantic culture which will spread out the entire quadrant from Galicia-IrelandBritain to the north-African Rif.
Palavras-chave: Galego-português – Berbere – Antropologia – Mitos – Música. Keywords: Galician-Portuguese – Berber – Anthropology – Myths – Music.
I. Aspectos atlânticos.
Os
primeiros habitantes do norte africano, os berberes entre outros, deviam ter
vivido desde longínquos tempos em territórios muito mais estensos que os de
hoje, já que supostamente faziam parte de uma antiga civilização da qual tentamos
tirar teorias. Contudo, os berberes atuais ocupam uma extensão que abrange o
norte do citado continente, o Saara, o Sahel da África ocidental, acrescentando
as áreas montanhosas de Aurès, Cabilia, Rif e Alto Atlas até aos desertos do
Mzab e Hajjar, chegando com probabilidade aos onze milhões de pessoas.
A origem mítica desta etnia não
deveria passar despercebida para uma cultura atlântica como a nossa, a
galaico-portuguesa. Existem mitos de uma suposta civilização da Atlântida que,
de ocupar um lugar na história, segundo Platão, teria aqui no antepaís destas
montanhas, depois do seu afundimento, um assento junto com a Península mais
ocidental e além dela.
Segundo Bosch Gimpera, o megalitismo
pôde ter ressonância nesta zona de vestígios arqueológicos de certas tendências
culturais e até psicológicas (tipo inconsciente coletivo como constatamos nas
lendas e mitos), com relembros de cultura musical (desde o trajar, vestidos de
labor, arracadas, a instrumentos, cantos, etc). Esta cultura da pedra deixou uma
Antiga Religião que deu lugar aos monumentos pétreos da civilização
europeia-atlântica. Não sendo abundantes os dólmenes conhecidos (como o de
Mzora, na Iebala marroquina), constatamos presenças de mamoas, o qual poderia
dar lugar a hipóteses que vão desde um megalitismo evidente mas serôdio, até
poder ser o mesmo berço dos construtores da pedra.
A base cultural seria a do Neolítico
(5000 adC), a cerâmica cardial em comum com boa parte da Europa, específica da
Berberia, acrescentando a esta koinê,
a chamada cultura do vaso campaniforme e pelo tanto conjunta ao chamado Bronze
europeu.
Sabemos hoje que o Bronze atlântico
galego-português tinha coincidência e contato natural com todo o próprio oceano
meridional e Mediterrâneo (curiosamente nomeado na alta Idade Média como Bahr al-rum o “mar dos cristãos”...). A
cultura dos Milhares (Almeria) ratifica estas relações. O megalitismo,
finalmente, fundamenta-se em toda a Berberia segundo Gabriel Campos,
estendendo-se o campaniforme por Marrocos, Argélia, Tunes, etc. (IIIº e IIº
milênio) precedendo ao Bronze antigo.
É para salientar que especialistas
em musicologia tradicional constatem uma série de relações musicais,
nomeadamente em similitude de melodias, registos de percusão, e jeito de canto
em determinadas produções musicais galegas, e elementos da música ibicenca
(lembremos as construções pétreas dos tholoi)
e mesmo com a Andaluzia oriental, como afirma o musicólogo Henrique Peão.
Antes da aparição de povos que
podemos chamar cientificamente históricos, embora de origens e situações nada
claras (tartéssios, turdetanos, iberos), o mito marítimo ocidental do Hércules
civilizador que tanto nos identifica com o nosso passado, também é na Africa
setentrional um mito comum de similar cultura civilizacional em quase toda a
Europa atlântica e parte da mediterrânea. Porque esse estranho instrumento de
cornos de touro chamado shamar que
nos recorda à civilização tartéssico-turdetana ou ibérica, que ainda é visível
na Berberia. Serão os cornos civilizadores das pegadas lendárias de um Hércules
culturizador atlante? Se calhar, os “cornos”-limite do Alexandre Magno corânico
que simbolizavam Oriente e Ocidente (o nosso ocidente, o único possível...). Na
Berberia é tão forte a pegada lendária daquele gigante que não se pode explicar
toponímia, culturas ancestrais, fundação e geografia destes povos sem o nomeado
filho do Atlante.
Já o mouro Rasis, cronista dos
séculos IX-X, nos conta a criação de um “Concílio de Cádis”, pois esta terra é
onde os gigantes construiram as suas colunas demarcadoras a jeito de triângulo
Corunha-Cáds (mais ou menos exacto)-Narbonense francesa (tantas vezes
conquistada e perdida pelo Islão):
”su
tercer vértice está en la comarca de la Isla de Cadiz, entre el occidente y el
Sur, mira al monte de Africa, cuyo nombre es Atlas (cordilheira do Atlas
atual ?) ou Hurusyus”.
Testemunha esta tradição o epônimo
hercúleo e a lenda de Homero, onde a cidade de Tânger é aceite como fundada
pelo filho de Neptuno, Antéu, sendo este, expulso por Hércules, nomeando depois
à cidade pelo onomástico da sua esposa Tingo. Existem, e são para visitar, as
Covas de Hércules[1]
às aforas de Tânger, covas onde os caprichos das formas das rochas, dizem foram
pegadas do gigante civilizador da sua e da nossa cultura ocidental...
Se na altura do 1000 adC sabemos que
na Península (séculos IX-VIII adC) e zona atlântica africana como núcleo,
existe uma civilização ibera, como un
epicentro provável que pudesse partir desde o Saara ou desde o Levante
oriental, então poderíamos combinar a denominação como ibero-iberbere, à beira
de comuns conotações com uma muito similar cultura e gentes que pudessem
pertencer originariamente a um igual ou similar povo atlântico.
A história de Tartessos, descoberta
por Shulten, poderia ser essa primeira civilização ocidental da qual falam as
fontes clássicas, talvez puderam ser uma variante ibero-iberebere. Inventarão o
bronze e chegarão até Inglaterra e Bretanha no norte e até Senegal e Guinê pelo
sul, compartindo também dólmenes com corredeira e galerias cobertas. Povo
civilizador segundo as crônicas que nos chegam, possuiam leis que derivavam de
reis míticos como Oceano, por onde passavam deixavam esses touros tão hercúleos
que delimitavam uma parecida koiné e
modo de vida cultural.
A referência de assentamento
posterior fenício na costa mais europeia da Africa não era senão a fama dos
mitos de Hércules, os limites do “mundo conhecido”, as colunas que marcavam e
guardavam as populações indígenas e berberes pelo sul e os galecianos (da Magna Gallaecia, não só a reduzida
Galiza nuclear atual...) pelo norte, sem esquecermo-nos de certas prováveis
bolsas de gentes tamazig no interior de Leão como é a etnia dos maragatos, da
tribo berber Barag wata, segundo
teses como as de J. Oliver Asín ou Gómez Moreno (v. trabalho de L. Alonso Luengo, 1980), hoje as mais
reconhecidas.
Posteriormente serão os outros
civilizadores, os romanos, quem designem aos tamazig como povos “bárbaros”
(como na Europa meridional designaram a germanos, celtas ou eslavos), derivado
de barbara ou “sem civilizar à
romana”, daí berbere[2].
Quase com certeza que os dominadores
do SPQR não gostaram dos povoamentos independentes, fortificados e aliados em
clães, e assim propuseram desde o início o modelo de submissão ao “município”.
Desaparecia por enquanto a nossa própria idiossincrasia de ligar a terra à
soberania. O exemplo da cultura céltica dos castros era toda essa expressão de
etnia e cultura própria. Resulta surpreendente observar como os berberes (assim
também os celtiberos) conservam uma forte tradição na criação destes pequenos
estados-castro, chamados ali Amghar,
zelosos da sua soberania para o governo civil marroquino, sendo capazes de
criarem confederações com líderes poderosos “estilo Viriato”, mas muito
vulneráveis pela sua excessiva independência e portanto, difíceis de se
organizarem como “nação” e muito menos com um discurso nacionalista, divididos
em tribos irreconciliáveis..., a que nos pode soar tuodo isto?
II. Os Berberes na Galiza altomedieval.
Em
714, depois da implantação muçulmana nos antigos reinos visigodo e suevo, os
berberes, convertidos agora à nova crença do Islão, acompanham Abdel Aziz ibn
Muza (se calhar também Tariq). Estes clães, de origem mais que provavelmente
indo-europeia, falam latim, berbere e um pouco de árabe, procediam da antiga
Mauritânia, província romana. Mas sobretudo eram ocidentais do Magreb, da agora
“província” muçulmano-árabe de Ifriquiya.
Sabemos que procediam das tribos matagara, fundadores na Hispânia das muito
conservadoras confederações berberiscas -vilas aliadas e clães- como a Madiuna,
Micanasa, Hawwara, junto com a mencionada Matghara, e que formavam a maior
parte do exército que havia tempo compusera Tariq, isto é, entre 12.000 e
350.000 segundo diferentes autores. À
hora de repartirem as zonas de ocupação, os bereberes saem desfavorecidos, ora
que os iemenies e qasies árabes levaram os melhores lotes de terra e zonas
estratégicas. Aos berberes cumpre-lhes a região levantina, o estremo ocidental
da cordilheira bética, Ronda e ilhotas do Guadalquivir. Fechado o primeiro
ciclo de conquistas em 732, o enfrentamento entre berberes e árabes faz que
aqueles se desloquem para o interior, chegando até à Galiza um grande
contingente berbere. Foi uma rebelião que durou quase dez anos e abrangeu desde
o Atlas africano até à Gallaecia.
Os berberes foram islamizados pela
cultura e crença árabe e tiveram sempre um orgulho de etnia, língua e cultura
muito diferençada que levou durante vários séculos a brigas constantes entre
ambos blocos que se repartiam o poder e soberania de grande parte da África e
agora da Europa meridional. O Islão foi o ponto assimilador e pacificador na
aposta de uma convivência e Fé comum que fizeram que ditas lutas rematassem com
o tempo. A memória coletiva dos povos cristãos receitores dos exércitos
muslimes traduziu-se em que a etnia predominante do Magreb romano, os berberes,
fossem chamados mouros na
Galiza-Portugal e nunca árabes, só que por estarem no mesmo bando esta
denominação foi assimilada também. Pudera acontecer que os nossos “mouros”, por
similitude sonora ou por lembranças antigas de gentes vindas de fora com
“poderes” distintos, com crenças diferentes, e sobretudo conhecedores da
“cultura da Pedra”, coincidissem com os mouros históricos berberes? Há qualquer
coisa que nos diz que essa coincidência não é só isso, senão um mundo mágico
compartido por ambos povos atlânticos de além e aquém do oceano, desde a Idade
megalítica e o Bronze. Compartimos inclusive, e não é de esquecermos, uma etnia
biológica com a Berberia, e que segundo Charpentier por enquanto hoje
constatamos pertencente ao grupo Rh sanguíneo A, assim Galiza-Norte de
Portugal, Euskalherria, Países célticos em geral, mesmo a Lapônia norueguesa
formariam uma família coincidente em volta de um componente sanguíneo comum.
Donde a origem desta familiaridade?
O professor Vallvé, historiador
islamólogo, afirma como o topônimo empregado pelos povos muçulmanos que aqui
assentaram foi nem mais nem menos que o arabizado Al-Andalus, por consequência
observa a transposição Atlas/Atlantis. É então uma prova mais da memória de um
passado comum, de uma cultura compartida arredor da weltanschaunng atlântica ? Quem denominaria assim à
Península/Europa mais ocidental? ou melhor dito, poderiam ser esses povos
abeirados ao mar oceano comum de própria tradição atlântica chamados berberes,
maioria de muçulmanos desde o século VIII, os quais trouxeram idiossincrasias
similares e uma nova Fé baseada, segundo os muçulmanos, na última Revelação de
Allah aos homens? Al- Atlantidus?
Para finalizarmos este parágrafo,
damos notícia das últimas investigações relativas à composição genética do povo
galaico e galeciense (da ampla Gallaecia) nas jornadas de Genética e História no Noroeste Peninsular (2002-2005), onde se teve
certeza de uma forte homogeneidade nos marcadores do cromossoma masculino Y (a
mais forte uniformidade deu-a a região de Bragança...), embora se detetou uma
estrutura modular típica de populações norte-africanas que na Galiza se
localiza numa frequência de 9’4%, estrutura mesmo situada em determinadas
gentes do Magreb: berberes?, um certo tipo singular de indoeuropeização ou
chegando a pré-indoeuropeização muito antiga e de uma cultura e gentes
atlânticas já quase ou decerto desaparecidas?
III. Etnia e Língua berbere.
É
difícil precisar com rigor qual é a ascendência racial-troncal deste povo por
força ocidental. Gustave Le Bon lança a hipótese fundamentada na existência
clara de duas subetnias bem diferenciadas. A primeira é de riscos africanizados
e de cabelos pretos que pôde ter vindo da extremidade asiática da África,
atravessando o Eufrates, norte arábigo ou ainda mais longe. O segundo ramo é o
de um povo de cabelos claros e olhos azuis de origem provavelmente
indo-europeia arribados desde a extremidade ocidental africana, como depois do
alto-medieval foi constatado pelo percorrido (é esta a derrota do bispo Odoário
de Lugo, século VIII, procedente da África nortenha para se assentar com a sua
povoação no Conventus Lucense?[3]) já conhecido por
visigodos, vândalos ou bizantinos. Aqueles povos indo-europeus podiam proceder
do norte europeu ou leste caucásico (o mais aceitado hoje nas investigações
antropológicas) porque os monumentos megalíticos -entre outros, como já vimos
no apartado anterior- deixados nesta zona são muito parecidos aos do mundo indoeuropeu,
e por suposto muito mais antigos que os restos arqueológicos deixados aqui
pelos vândalos germanos. Estas pegadas monumentais antigas ratificam-se com
força no Egipto (1500 adC?) onde estes povos louros e de tez branca estão
assentes na África, e embora hoje sejam minoria, nos povos tuareg do deserto,
podemos ver rastos dessa antiga civilização.
Actualmente, só ficam bolsas de
berberes deste segundo ramo indo-europeu e de resto, diferentes degraus de
mistura com outras etnias árabes ou pretas. Anteriores aos árabes na antiga
Ifriquiya, os berberes já conviveram com cartagineses, romanos, vândalos,
visigodos, bizantinos e conheciam o cristianismo principalmente arriano e
donatista. Os traços europeizados e a psicologia especial destas gentes ainda
são fáceis de diferençar do resto dos povos do Magreb: vestimenta, costumes,
música, antropologia cultural, idiossincrasia, o comum culto ao lume de
possível ascendência antiga europeia, nao é a lareira tradicional galega do
finisterra um familiar culto ígneo?
A antropologia física berbere pode
ficar resumida num esquema fundamentado nas fontes greco-latinas e no principal
conhecedor - in situ et in tempore- dos bereberes do século XIV,
Ibn Jaldum:
1.
Berbere “antigo”, de suposta origem ibero-europeia, de corte para muitos
caucásico (relaçoes étnicas desde o Bronze caucásico europeu e atlântico?),
nómade, ganadeiro. Chamado numida pelos romanos e botr por Ibn Jaldum, é o rifenho de corte acastanhado ou louro, às
vezes de olhos claros (daí o estamento dirigente dos tuareg, hoje em vias de
dissolução).
2.
Berbere agricultor muito misturado com elementos árabes e certos grupos
indígenas. Os greco-romanos chamaram-nos getulos
e Jaldum branes. É também chamado
mazmuda e a sua língua é o xelja ou chelja. Há influência de elementos
negroides.
3.
Berbere mestiço, muito parecido ao botr,
chamado senjaya em Marrocos e cabila
na Argélia.
A língua berbere ou tamazig é extremamente antiga, de
provável origem fenícia (melhor ibero-fenício segundo estudos de C. López
Serrano, 1983), hoje praticada em zonas de montanha ou vilas afastadas de
urbes, forma numerosos dialetos, diferenciando os que estão muito ou pouco
arabizados em léxico e fonética, sendo muito pouca a atual referência às
línguas grega ou latina, donde tiraremos conclusões da atual e real pegada da
arabização destes povos marítimos e desérticos.
É provável a língua berber (as
influências do árabe são também notórias nos seus respetivos dialetos) pudesse
pertencer à comum língua hamita que deu pé a dois dialetos. O primeiro é o mais
rico, e é considerado como “puro” berbere, é o tamazig. Com certeza neste
idioma, amazig é “filho da terra”, mur é
“mar” e ta-mur é
“terra” ; tamur é portanto “filho do mar e da terra”, de aí
derivaríamos que mouro vem do tamazig
mur, mar e “tamouro” é o que é do mar
e da terra, ou mouro, aquele que procede do mar, um dado mais para uma maior
ampliação do nosso horizonte cultural se algum dia quisermos saber o que
poderia significar essa antiga palavra chamada mouro[4]
para nós os galegos.
Finalmente queríamos sublinhar que
as grafias e alfabeto tamazig, além de terem dificuldade para chegarem vivas à
atualidade, ficando quase como língua ágrafa, são muito semelhantes às grafias
iberas e celtiberas, denotando o seu contato ou génese com o alfabeto fenício.
Relativo à História da Galiza, temos
o caso do proto-arqueólogo, filólogo e historiador António Tovar[5], quem tentou decifrar umas
lousas nas montanhas africanas e berberes, em possível língua ibera e copta do
Leste, e mesmo comparando-as ao basco e ao ibero-berber, mas não chegou a
grandes conclusões, decerto que o grave problema dos nossos investigadores
sempre foi o desconhecimento vertebral da língua tamazig em todos o seus
estratos.
IV. Coincidências musicais.
Foi
uma observação direta no Rif marroquino e berbere quando certificamos que os
cantos e instrumentalização das vozes femininas em combinação com a percusão
eram capazes de produzirem música muito semelhante ao das pandeireteiras
galegas quer do interior, quer da costa.
Acostumam na Berberia chamar deff a estes instrumentos de percusão (a
duas mãos sempre) e t´bal ou gedra às
pandeiretas de variados tamanhos. O canto em geral, e neste caso, feminino,
denomina-se iffou lhal. Os cânticos
acontecem em circunstâncias festivas como é um casamento, onde as mulheres
celebram a boda de uma maneira hermética e afastada da “festa dos homens”, mais
austera.
A disposição das pandeireteiras
berberes pode ser em linha e de pé olhando para a frente dos receitores, ou em
forma semicircular, sentadas ou mesmo de pé também. A instrumentação é, como
dizíamos, principalmente de percusão, usando pandeiretas de coiro aquecidas com
anterioridade, o mesmol que os tambores, nem sempre de coiro pois num caso
determinado improvisam com elementos metálicos mesmo domésticos. Também podemos
perceber o emprego de pratos pequenos digitais (dous numa mão e um noutra). Existem
ao tempo tamborzinhos pequenos cilíndricos do tamanho duma mão esticada e que
terminam nm bordo mais largo para percutir com a mão contrária.
A forma de canto, isto é, a
vocalização dos conjuntos de instrumentistas, é muito parecido ao das
pandeireteiras (com pandeiros e pandeiretas) galegas. Empregam o que em algum
momento descrevemos como “leixa-prem” ou início de uma estrofe-estribilho de
uma vocalista, que a seguir, é tomada pelo resto das cantoras para repeti-lo e
desenvolvé-lo, assim, tomam e deixam o fio condutor da letra e ao tempo do
próprio som da canção. Lembremos só de passagem que a voz pandeireta-pandeiro
galego procede do tamazig arbandur (•ΘΛ•IIV÷O), cuja base léxica berbere dará em árabe bandur, eis mais uma longínqua relação espaciotemporal.
Semelha todo este leiv-motiv atlântico e galego-berbere
ser um jeito de canto e músicas muito antigas -para além do medieval- , uma
tradição perdida no tempo e simbolicamente quase megalítica, quando pensamos
onde é que temos de começar por ler esse cordão mítico e ao tempo diferente que
é capaz de unir culturas tão distantes e sabendo-o ver e interpretar, não tão
distintas.
Esta ascendência distante, filha
talvez da Antiga Tradição da Pedra ou semelhantes, pode ser a de uma dança sita
na Galiza chamada “Moinheira Velha” ou “Ribeirana”, que na zona da Costa da
Morte, é cantada exclusivamente por mulheres à pandeirada, onde bailam os
homens entre eles com agressividade e a jeito de combate, e no entanto, as
mulheres (outras) dançam entre elas, fazendo círculos, oitos, signos de
infinito e entrelaçados no chão. Vê-se isto em Sãs, Serantes, Lage e outras
vilas e aldeias. O canto desta moinheira velha é muito similar ao das
pandeireteiras berberes[6], e dizem ainda os velhos
destes lugares que não gostavam muito das “moinheiras novas” -mais definidoras
e populares da atual moinheira- ou danças alheias e estranhas vindas do
interior, pois não tinham nada a ver com a tradição.
Na anterior comparança é de
salientar o ponto comparativo existente entre a moinheira velha e a música
ibicenca (issards?) no jeito
expressivo dos dançantes e mesmo em certas posições dos pés ao dançar (arraste
dos pés nas mulheres, gesto belicoso nos homens). É mais uma vez o relembrar
dessa hipotética cultura de mais de cinco mil anos, a que nos une com Baleares,
Andaluzia oriental ou Berberia ao tempo que ao norte europeu insular.
Exemplos musicais berberes e
galego-portugueses |
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Festa de casamento com pandeireta (Marrocos) |
Moças de Ait Hadidou com signo de Fâtima (Marrocos) |
Pandeireiteras/os de Maceda (Ourense) |
|
V. Conclusões.
Quando Antropologia, História, e
mundo lendário se entrelaçam de tal jeito que confluem num ponto comum para
desde aí começar a desenvolver teorias que pela comparação podem chegar a ser
atrevidas, é o momento de construirmos umas mínimas bases que levam a afirmar
que existem afinidades que podem partir de um comum Mundo Antigo Atlântico,
de possíveis crenças e tradições compartidas através do mito da Atlântida ou
similares (a ideia de uma religião marítima e megalítica de Bosch Gimpera, de
G. Childe ?), daí lendas de cidades maravilhosas dignas dos melhores reis
memoráveis, urbes desaparecidas na memoria popular[7] como o mito de Yedad ben
Ad, do povo dos Ad corânico...; uma
cultura similar também ao sul peninsular e balear no campo musical, um afim
mundo megalítico que não sabemos se é nuclear ou receitor dessa cultura que por
extensão ao tempo foi uma cultura da cerâmica cardial e do vaso campaniforme,
um povo berbere que pode entroncar com uma koiné ibérico-celtibérica de riscos
antropológicos e históricos, só lembremos aqui a arqueologia comparativa de
rostos e vestimentas das mulheres do Atlas e figuras da arte ibera como o
Pebetero (Tossal, Alacant-), exvotos figurativos de muitos soterramentos
peninsulares e norte-africanos, o enxoval da Dama de Baza e a de Elx em
comparança com o trajar e enfeites berberes, uma língua tamazig e dialetos que
entronca em possíveis origens e grafias com o grupo hamita, embora só seja uma
teoria na atualidade, uma idiossincrasia e cultos parecidos presentes no
inconsciente coletivo (culto ao lume, mito dos tesouros -como os nossos mouros
galegos ?-, desconfiança ao invasor, retranca em contos e lendas, etc.)
que levam finalmente a desembocar numa música de percusão e vocal de imediata
irmandade, um canto e instrumentalização nas pandeireteiras galegas e no norte
hispânico-luso de grande familiaridade, certas danças muito expressivas que
recordam ao mais africano e atlântico que conheçamos.
Que este achegamento cultural até ao
ponto exato onde coincidimos em espírito e cultura, possa pôr-nos ao alcance
uma ponte válida e inescusável com esse
povo hoje islâmico e atesourador duma cultura muito particular e com certo
perigo da perda de consciência de si que é o berbere, seja tudo o aqui
expremido também um aviso das tronadas homogeinizadoras que nos ameaçam num
futuro imediato a todos nós, galegos e galegas, quando espreitamos o horizonte
do nosso Oceano.
Apontamento.- Este trabalho de campo foi publicado em MIRABILIA.
Revista Digital (Eletronic Journal of Antiquity, Middle & Modern Ages): Dr. Rios Camacho, J. Carlos, “Antropologia comparada e música tradicional dos povos berbere e galego-português.
Um achegamento cultural entre o Ocidente, o Pré-Islão e o Islão norteafricano”, Núm. 13, dezembro 2011, pp. 79-91.
ISSN: 1676-5818. In http://www.revistamirabilia.com/
, concretamente, https://www.revistamirabilia.com/sites/default/files/pdfs/2011_02_04.pdf
Esta edição (2021) para Community Conscience Edoras é a versão extendida com ilustrações fotográficas que se achegam.
BIBLIOGRAFIA
GERAL
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Menaut, A. Amorim, Sandra Beleza e Cláudio Torres (a este último autor não lhe
foi publicada a sua palestra).
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